Dezessete
anos atrás, o funcionário público Santiago Angulo Jaime, morador do
município paulista de Ourinhos (a 350 km da capital), recebe o
telefonema de uma assistente social do fórum e fica radiante com a
notícia: sua filha tinha acabado de nascer. Não, a esposa de Santiago – a
dentista Ivone Maria de Lima Jaime – não estava grávida. O
telefonema era para avisar que a criança que tanto aguardavam finalmente
havia chegado.
Eles tinham decidido ser pais adotivos. A partir daquele dia, a vida
de Ivone começou a mudar. De um encontro com as amigas Laura Landulfo e
Eliana Chiaradia, surgiu a ideia de criar um grupo, que se tornaria mais
tarde o Grupo de Incentivo e Apoio à Adoção da Região de Ourinhos
(Giaaro). Ivone não podia imaginar a dimensão que aquela atitude
representaria em sua vida. Envolveu-se tanto com a causa, que acabou por
tornar-se uma “guerreira” em encontrar um lar para crianças que
necessitam de família. “Quero ser a voz da criança a juízes, advogados,
assistentes sociais, psicólogos e a todo mundo que de alguma forma tenha
responsabilidade com crianças que vivem em abrigos. Precisamos nos
mobilizar, e a sociedade também deve se indignar e agir quando uma
criança estiver em situação de risco”, afirma.
Na função de presidente do Giaaro, Ivone explica que é
fundamental unir todos os agentes responsáveis por essas crianças em
torno de uma política pública que interceda junto às famílias carentes, a
fim de que possam ter estrutura para cuidar de seus
filhos. Infelizmente, algumas dessas crianças
são
recolhidas em abrigos do Estado e não voltam mais para suas
famílias. Segundo Ivone, quando o Conselho Tutelar retira a criança da
sua família, algumas mães sentem-se aliviadas, pois entendem os filhos
como um “estorvo” ao seu estilo de vida. Outras, contudo, entram em
desespero quando percebem
que podem perder a guarda dos filhos por expolô-los a situações de risco.
O que difere uma mãe de outra, segundo Ivone, é o que ela chama
de “querência”. “O olhar de desespero das mães que não querem perder os
filhos é
visível,
e, para elas, é preciso que a sociedade arrume trabalho, moradia,
creche, a fim de que possam ter a mínima condição de criarem seus
filhos. “Precisamos, de todos os modos, evitar que crianças fiquem em
abrigos ou lutar para que permaneçam neles o menor tempo possível quando
isso acontece”, afirma. A existência de abrigos é necessária, claro, já
que na maior parte das vezes eles são a única opção de estadia para
crianças sem lar. Mas a permanência prolongada de crianças em abrigos
é prejudicial para seu desenvolvimento.
Graves são também os casos de crianças “devolvidas” pelas
famílias adotivas. Ao falar desse assunto, a tristeza de Ivone é
aparente, e sua voz sai
com
dificuldade por causa do choro contido: “No abrigo, a criança é
apenas mais uma, entre tantas. Lá, a criança já não é filha, pois seus
pais não cuidam
dela,
e ainda não é filha, pois não tem ninguém que a olhe nos olhos e a
chame de filho. No abrigo, a criança é ‘filha de ninguém’. Agora,
multiplique por
dois a tristeza do abandono e da rejeição quando são devolvidas...”.
Conquistas
De um modo geral, a criança acha que é culpada pelo abandono. Ela
costuma pensar que fez algo errado que tenha provocado a raiva dos pais
e, por
isso,
eles a deixaram. Apesar da tristeza quando fala desse assunto, a Ivone
“guerreira” ressurge, garantindo que nem tudo é tristeza, e comemora
vitórias. O Giaaro e outras entidades importantes em âmbito
nacional obtiveram conquistas, como a lei 12.010, que regula a adoção. O
Projeto de Lei é de 2004. Sancionada no ano passado, essa lei faz
modificações no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ao estipular
um prazo de até dois anos para a criança permanecer no abrigo. “A
criança fica muito tempo no abrigo. Muitas vezes até os 18 anos, quando
então tem de sair. Então, pergunto: como uma pessoa pobre e sem família
pode sobreviver sozinha? É uma crueldade”, afirma. Segundo Ivone, a
decisão de permitir que a criança fique no máximo dois anos sob guarda
do Estado obriga a que todos os agentes envolvidos unam esforços para
lhe encontrar um lar: “Agora, todos temos de correr atrás”. Essa lei
estimulou um trabalho multidisciplinar na corrida por um lar. O
diagnóstico passa a ser feito, efetivamente, por profissionais de
prefeituras, dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), de
escolas e de atividades afins.
Antes de essa lei ser sancionada, não havia uma definição sobre
quem deveria fazer o trabalho e como deveria ser feito. Essa lei
sistematizou o chamado
Plano
Individual de Atendimento (PIA), que discorre sobre a atenção à criança
e ao adolescente nos abrigos, reunindo agentes e famílias envolvidas
em
audiências, a fim de resolver os casos de maneira mais rápida e
objetiva. “Essas reuniões têm o objetivo de fornecer instrumentos e
ajudar os juízes na solução dos casos. Queremos que família, escola e
outras pessoas envolvidas assumam efetivamente compromissos com a
criança, sem jogar a responsabilidade no outro. Essas audiências vão
colocar frente a frente todos os envolvidos com a criança e estabelecer
acordos. É preciso fechar o cerco”, explica Ivone.
Processo irreversível
Outra vitória importante é a obrigatoriedade para que os casais
que querem adotar façam um curso preparatório específico. Ivone explica
que esses casais precisam conhecer os riscos e os obstáculos a que todos
os pais estão sujeitos, sejam eles biológicos ou não, para que não
aconteça o absurdo de se devolver a criança.
De acordo com a advogada Simone Colenci Goldoni, 37, de Tietê (SP),
quando acontece a adoção tardia (criança acima de 3 anos), há um período
de
adaptação entre os pais e a criança. Esse processo pode ser
interrompido pelos pais ou pela própria criança, caso ela não se adapte à
nova família.
“É raro, mas às vezes acontece de uma criança pedir para voltar ao abrigo no período de adaptação”, explica.
Às mães que dizem não aguentar os possíveis contratempos, Ivone manda
um recado: “É só se lembrar de Maria, ao pé da cruz, olhando o filho
morto, inocente e santo, que vocês aguentam qualquer coisa, com esforço e boa vontade”.
Infelizmente, é comum os pais devolverem as crianças. Muitos têm uma
noção romântica do que é ser pai e mãe. Quando a criança real chega,
surgem os problemas.
Para o jornalista Alex Criado, pai da Maria Eduarda, a Duda, hoje com
4 anos, ser pai adotivo não é fazer caridade. “Quem adota deve fazê-lo
por que quer construir uma família e exercer a paternidade”,
afirma. Alex concorda com os cursos e entrevistas obrigatórios, já que
por meio deles muitos enganos são identificados logo no início do
processo de adoção: “Quem diz querer adotar para ajudar uma criança
carente ou para salvar o casamento já começa equivocado”.
Por causa da falta de preparo, muitos pais dizem não suportar as
dificuldades para educar uma criança adotada. Para Alex, a adoção é um
mecanismo
obrigatório
na relação entre pais e filhos, sejam eles biológicos ou não:
“Todo filho tem que ser adotado, inclusive o biológico. Adotar é aceitar
seu filho, em
toda
sua individualidade. Esta é a magia da paternidade: você aceitar seu
filho, sabendo que ele não é uma cópia sua e, mais tarde, ver um pouco
de você nele, independente da semelhança física”.
Mitos e preconceitos
A luta contra o preconceito da adoção deve começar em casa, no
próprio lar onde vive a criança adotada. A queixa de que crianças
adotadas são
mais
revoltadas e rebeldes não é consenso entre os pais adotivos. O
motorista José Roberto Gomes Gordo, morador de Cambé (PR),
discorda totalmente de quem diz que filho adotado dá mais trabalho que
filho biológico. Pai de quatro filhos, dois deles adotados, José
Roberto afirma categoricamente: “Aqui em casa não acontece nada disso
não. Filho é filho. O Bruno, por exemplo, que adotamos quando tinha 10
anos, é calmo, estudioso, não tem nada de rebelde, não”.
Para Ivone, isso tem a ver com a maneira como os pais lidam com a
adoção dentro de casa. “Geralmente, quando alguém descobre que é fruto
de um
segredo,
automaticamente faz a ligação de que é objeto de vergonha, de
algo inaceitável; aí a relação familiar fica comprometida,
infelizmente”, explica.
O antigo hábito de esconder a origem do nascimento de crianças
adotadas deve ser uma prática relegada cada vez mais ao passado. Hoje, a
pessoa
adotada
tem o respaldo da lei para ir atrás de sua história, quando atingir
a maioridade. Para Ivone, o adotado tem direito de conhecê-la, porque
ele é a
parte mais importante do processo.
Caminhos para a adoção
O pretendente à adoção de uma criança cujos pais ainda não perderam
o pátrio poder (poder dos pais com relação aos filhos menores,
representados ou
assistidos legalmente por eles) deve obrigatoriamente procurar um advogado.
Infelizmente, esse processo é bastante demorado, e leva em média três
anos. Mas, de uma maneira geral, não é necessário ter advogado para
adotar uma
criança.
O pretendente deve procurar a Vara da Infância e Juventude do
município onde reside, fazer inscrição no Cadastro Nacional de Adoção e
passar por entrevistas com psicólogos e assistentes sociais. A espera
também pode levar anos.
A Organização Mundial de Saúde estima 8 milhões de crianças
abandonadas no Brasil. Dessas, cerca de 10 mil estão disponíveis para
adoção. Uma
tendência observada no Brasil é a preferência inicial dos casais em adotar menina, recém-nascida e branca.
Na opinião de Simone, essa tendência vem diminuindo, e hoje é
possível ver casais que não hesitam, por exemplo, em adotar irmãos: “A
condição econômica do pretendente à adoção não é o fator determinante. O
que se leva em conta é se o adulto vive de forma idônea e mostra-se com
capacidade de educar, cuidar, dar carinho e atenção”.
Para Ivone, a adoção é um dos métodos de se ter filhos, ainda que
muita gente ache que pais adotivos são heróis por resgatarem a “pobre
criança” da miséria: “Na verdade, ao adotar uma criança, os pais pensam,
antes de tudo, na sua necessidade de serem pais, e a adoção é uma
maneira tão legítima quanto as outras”.
Em tempo: Ivone e Santiago são pais de três filhos (dois são
biológicos): Rafael, 21; Laura, 17; e Arthur, 15. Quando ela e o marido
resolveram adotar
a Laurinha, o Rafael já tinha 4 anos.
Quem pode adotar
• Qualquer pessoa maior de 21 anos, idônea, com sanidade mental comprovada e que tenha dezesseis anos ou mais que o adotado.
• Pessoas solteiras ou viúvas, independente do sexo.
• Um dos cônjuges (ou concubinos) pode adotar o filho do outro. Isso é chamado de adoção unilateral.
• Tios e primos podem adotar (proibido aos avós, bisavós, filhos, netos e irmãos).
•
Não existe idade máxima para o pretendente à adoção; porém, é levado
em consideração o risco de um pretendente com idade avançada, que reduz a
probabilidade de convivência com a criança.
Quem pode ser adotado
• Crianças e adolescentes, cujos pais biológicos sejam falecidos ou tenham sido destituídos de seu pátrio poder.
• Pessoas entre 18 e 21 anos que já estiveram sob a guarda ou tutela do interessado na adoção antes de completar 18 anos.
• Adolescentes maiores de 12 anos devem dar, obrigatoriamente, o consentimento para serem adotados.
FILHOS DO AMOR
Após três anos de casados, o gerente comercial Welton Ferreira de
Almeida e a paisagista Luciana de Areia Leão Almeida acharam que era
hora de ter um filho. Estava nos planos do casal, que vive em São
Paulo, conceber um filho biológico e, algum tempo depois, adotar uma
criança um pouco mais velha, de sexo diferente ao do primogênito. Marido
e mulher compartilhavam o sonho de ter um casal de filhos.
Porém, depois de vários exames, Luciana soube que não poderia
engravidar. A descoberta apenas agilizou a alternativa pela adoção, já
que o casal,
católico, não considerava como opção as estressantes e dispendiosas técnicas de fertilização.
Ao longo de três anos – quase um ano de burocracia para o preparo de
documentos e outros processos somente para entrar na fila de adoção e
dois anos,
efetivamente, na espera pela criança –, o casal se preparou para assumir a paternidade.
Decoraram o quarto, ganharam o berço e as roupinhas e participaram
de cursos preparatórios e palestras. Depois disso tudo, um telefonema da
assistente social do fórum os deixou apreensivos. Ela os avisava de que
havia um problema com o processo deles, que teria que ser revisto. “Mas
como, que problema?”, indagaram sem entender, já que vinham cumprindo,
com paciência e dedicação, todos os passos legais para assumirem a tão
sonhada paternidade.
Então, souberam: o quarto teria que ser transformado para receber duas
crianças em vez de uma. Eles seriam pais de gêmeos, um menino e uma
menina, de cerca de nove meses. “A providência divina apenas agilizou o
que tanto sonhávamos: um casal de filhos”, afirma Welton.
Casais optão pela adoção como alternativa natural para exercer a
paternidade “Nossos filhos nos deram a possibilidade de sermos pais,
eles são maravilhosos e a felicidade que sentimos por eles existirem é
inexplicável. Recomendo a qualquer pessoa passar por essa
experiência”, avisa o pai-coruja.
Amor compartilhado
Foi José Augusto, o filho mais velho do motorista José Roberto
Gomes Gordo, que chegou em casa com a novidade: trazia da escola o
colega de classe
Bruno
para que seus pais o conhecessem. A amizade entre os dois estendeu-se
para a família e não deu outra: Bruno, então com 10 anos, foi adotado
legalmente por José Roberto e pela esposa Ione.
A atitude do casal provocou surpresa nos vizinhos e conhecidos.
Morador de Cambé, interior do Paraná, José Roberto conta que Bruno havia
sido
“devolvido”
por duas famílias que o haviam adotado anteriormente. “Quando fui
acertar a documentação do Bruno, o funcionário do cartório me perguntou
se eu não tinha medo do que podia acontecer, porque o garoto já tinha sido rejeitado duas vezes”, conta.
Naquela ocasião, e em algumas outras, José Roberto teve de responder
que não tinha medo de nada porque o Bruno era um ótimo filho. E assim é
até hoje, garante o pai. “Bruno é estudioso e calmo, já o Zé Augusto,
por exemplo, é mais estressado”, revela, com uma boa risada.
Mas a adoção de Bruno não é a única. Antes de ele chegar na
família, José Roberto e sua esposa Ione já haviam adotado Ângela, então
com 40 dias. Cinco anos depois, nasceu mais uma filha biológica do
casal, Elena. Segundo José Roberto, os quatro filhos cresceram em um lar
no qual o termo “adoção” nunca foi dito entre segredos ou como algo
vergonhoso. Pelo contrário, tanto Ângela quanto Bruno sempre tiveram
liberdade para ir atrás de sua história, caso quisessem. “Mas veja você
como os filhos da gente são diferentes, enquanto a Ângela retomou o
contato com as irmãs biológicas, o Bruno não tem o menor interesse em ir
atrás de seu passado, e respeitamos as decisões dos dois”, explica,
feliz da vida porque está prestes a se tornar avô pela primeira vez:
Ângela, hoje com 22 anos e casada, está grávida de seu primeiro
filho. Adoção consagrada “Tragam a Bakhitinha que os pais dela
chegaram”, avisou a supervisora do abrigo onde estava a filha do
jornalista Alex Criado e da coordenadora de projetos Edilene da Cruz,
moradores da capital paulista. “Bakhitinha?”, perguntou Alex, já
começando a desconfiar da enorme coincidência entre sua filha e a Santa
Josefina Bakhita. Para entender essa história, é preciso voltar no
tempo. Antes mesmo de pensar em adotar uma criança, Alex chegou a
acompanhar todo o processo de adoção de uma criança negra, iniciado por
um casal de amigos. Como a mãe adotiva queria informações sobre alguma
santa negra, Alex resolveu ajudar a amiga. Pediu então a uma
jornalista que lhe enviasse matérias sobre santas negras, uma vez que
não conhecia nenhuma. Ela enviou-lhe então uma matéria sobre Santa
Josefina Bakhita.
O
tempo passou, ele acabou não repassando a matéria à amiga, que se mudou
com a família para o exterior, e o texto ficou esquecido durante
anos no escritório de Alex. Quando ele e a esposa resolveram adotar uma
criança, após oito anos de casados, procuraram todas as formas legais
para isso. Viveram um ano e sete meses na chamada “gravidez
jurídica”, período, segundo Alex, de ansiedade e angústia muito grande.
Nessa época, resolveram arrumar o cômodo que abrigava o escritório para
transformá-lo no quarto da criança. Na arrumação, Alex encontrou a
matéria esquecida, mas não lhe deu atenção. Jogou-a no lixo, assim como
tantos outros objetos e papéis, para deixar o quarto arrumado. Pouco
tempo depois, Edilene recebeu o telefonema da assistente social
do fórum, avisando-os que a filha deles havia nascido. Quando chegaram
ao abrigo para ver o bebê, aconteceu o diálogo reproduzido no início
desta matéria.
Alex soube então que aquele local onde sua filha estava chamava-se
Casa Bakhita em homenagem à Santa Josefina Bakhita – daí a maneira
carinhosa como a coordenadora da casa chamara a menina. Naquele momento,
Alex e Edilene perceberam que a filhinha deles, uma garotinha negra,
lembrava muito a meiguice da santa católica.
por Isabel Ferrazoli
REVISTA AVE MARIA