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quarta-feira, 19 de maio de 2010

AS DIFICULDADES QUE FAZEM CRESCER


As dificuldades

Fazem cair ou subir
Todas as dificuldades pode ser, para nós, pedras de tropeço, becos sem saída onde paramos, caímos e nos machucamos; ou degraus que, com esforço, nos fazem subir. O que são para nós as dificuldades? Pedras, becos ou degraus?
É um fato evidente que não cresce aquele que fica marcando o passo num ritmo espiritual parado, de simples manutenção das suas virtudes e qualidades. “Já está bom assim”...
Não são poucos os homens com essa mentalidade, parados, que – como o equilibrista – se mantêm na corda bamba de uma “certa bondade”, mas não avançam um só passo. Os anos vão passando, eles continuam a ser bons, mas estão (aparentemente) sempre na mesma. Digo “aparentemente”, porque a alma nunca pode “ficar na mesma”. Há um velho adágio cristão, cheio de sabedoria e experiência, que afirma que, na vida espiritual, “não avançar é retroceder”.
Todos conhecemos casos surpreendentes de retrocessos. Trata-se de pessoas que, tendo oferecido durante longo tempo uma imagem de honestidade e bondade, de repente nos chocam com uma virada completamente inesperada. Um pai que, sem motivo aparente, larga a família; um profissional íntegro que um dia amanhece incrivelmente envolvido num desfalque; uma pessoa religiosa, católica praticante e atuante, que subitamente mergulha numa crise e abandona a fé...
Nestes casos, tudo parece indicar que houve um afundamento repentino e inexplicável. Mas a experiência da vida nos diz que, na maior parte das vezes, não foi assim. O que aconteceu foi que essas pessoas se conformaram com um espírito de “simples manutenção”, com ir levando as coisas sem um impulso de crescimento. Já fazia anos, talvez, que se arrastavam numa rotina sem vida, e essa rotina – como água fina que penetra pelas rachaduras de uma casa – foi desgastando a bondade e esvaziando as virtudes. Tal como na vida do corpo, a falta de renovação trouxe a necrose.
Este processo de deterioração provocado pela rotina observa-se, com muita freqüência, na gênese de boa parte dos problemas familiares. Podemos pensar numa família estável, bem constituída, em que pais e filhos se mantêm unidos pelos laços do carinho. É claro que, por melhor que seja o ambiente familiar, não faltam as dificuldades. Talvez sejam apenas as corriqueiras, mas, por serem muitas vezes repetidas, podem ir empanando insensivelmente o afeto, recobrindo de ferrugem invisível as boas vontades e as boas disposições. Então, à medida que o tempo passa, os atritos podem tornar-se mais freqüentes, a impaciência – provocada por minúcias insignificantes – mais áspera e repetida, e o mau humor ir ganhando terreno no relacionamento familiar. Certamente, não deixará de haver momentos em que os defeitos de um ou de outro se acentuem, e então a irritação poderá tornar-se explosiva. Bem sabemos como uma reação brusca – um comentário ríspido, um surto de ira, uma crítica ferina – costuma provocar outra reação mais brusca ainda, e assim acaba-se dando origem a uma reação em cadeia de mágoas, acusações, decepções e desentendimentos capaz de desandar para um desfecho catastrófico.
A recusa de crescer
Caso nos perguntemos o que houve num processo deste tipo, possivelmente a primeira resposta que nos venha ao pensamento seja: houve dificuldades, uma chuva de pequenas dificuldades, uma poeira desgastante e insuportável de dificuldades.
No entanto, a resposta verdadeira é outra. O que houve foi uma recusa do dever moral de crescer. Na realidade, cada pequena dificuldade estava pedindo um pouco mais: um pouco mais de paciência, um pouco mais de generosidade, um pouco mais de abnegação e esquecimento próprio, um pouco mais de humildade... Cada dificuldade era um apelo para se crescer em algum aspecto de uma virtude, mas o coração estava acomodado e não foi capaz de dar esse algo mais.
Cada dificuldade, grande ou pequena, indica, por assim dizer, o tipo de crescimento espiritual que Deus espera de nós. Quando lutamos por superá-la, isto é, por estar à altura daquilo que a dificuldade nos exige – esse “pouco mais” de que falamos –, estamos dando um passo à frente e subimos até um nível de maturidade adequado que nos deixa em condições não só de evitar o desgaste, mas de nos tornarmos melhores.
Cristão normal – aquele que tem energias para viver moralmente bem – é aquele que consegue dar, ajudado por Deus, a resposta certa, com um novo ato de virtude, a cada nova situação que aparece: resposta de fé, ou de amor, ou de fortaleza, ou de sacrifício.
Se, em vez disso, permanece na manutenção rotineira dos seus hábitos, recusando-se a dar mais de si quando as circunstâncias lhe pedem maior virtude, ficará como que achatado e sem forças. Irá ficando “por baixo” dessas circunstâncias, moralmente defasado e, por isso mesmo, incapaz de dar uma resposta à altura do que é preciso. É natural que acabe sucumbindo. Aqui se encontra, em resumo, a explicação de muitos inexplicáveis.
Duas fraquezas
É importante que nos apercebamos de que existem no homem duas espécies de fraqueza, muito diferentes entre si: uma é a fraqueza natural – que poderíamos chamar sadia –, e que é própria das limitações de todo o ser humano (a fraqueza que também os santos experimentam); e outra é a fraqueza doentia, que resulta da apatia moral, da falta de ideais ou de luta por alcançá-los. Esta fraqueza doentia é a que deixa o homem desarmado perante os valores morais. As mesmas dificuldades que para o homem moralmente sadio são corriqueiras, que não passam de pequenas lutas diárias que se aceitam com naturalidade, para o doentio são intoleráveis, da mesma forma que o alimento são é insuportável para o estômago enfermo.
O “efeito” das dificuldades depende da atitude que adotarmos diante delas. A atitude certa, no caso, é a de aceitá-las sem protesto nem surpresa, como um incentivo e um belo desafio. “Cresce perante os obstáculos”, diz Caminho (n. 12). Esta pequena frase resume tudo o que agora procuramos comentar. É preciso não só contar com as dificuldades, mas aceitá-las de bom grado e até amá-las, uma vez que elas nos ajudam a construir, degrau a degrau, a escada que nos eleva até à maturidade moral.
Esta é a atitude do esportista, do pesquisador, do homem que se lança a uma nova iniciativa profissional. Ao começar a sua tarefa, está num ponto de partida e sabe que tem diante de si, a aguardá-lo, inúmeras dificuldades. Desde o início, tem consciência de que não se está propondo coisas fáceis e sem valor. Não está a fazer exercícios de repouso na rede. Está começando a lutar, tem um objetivo grande e empolgante – vencer um torneio, fazer uma descoberta científica, arrancar do nada um empreendimento –, e com gosto arregaça as mangas. Se há dificuldades, e necessariamente tem que havê-las, elas serão um estímulo diário, um motivo de criatividade e de melhor desempenho. Tudo isto, que é tão evidente nos ideais puramente humanos, às vezes parece obscurecer-se quando se trata do maior ideal, da maior grandeza do homem: a sua autêntica realização que é a realização espiritual e moral, a perfeição do homem enquanto homem e filho de Deus.
Quem tem grandeza moral nem sequer espera pelas dificuldades. Adianta-se e vai ao encontro delas. É a grandeza moral que o faz propor-se metas espiritualmente altas e árduas, recusando como verdadeira morte a instalação medíocre numa bondade morna.
Deste modo, o homem que se propôs a meta alta de viver o amor a sério, vai alentando no seu íntimo o desejo eficaz de se entregar cada dia mais a Deus e aos homens. Tudo o que faz lhe parece pouco. No fundo da alma, ecoa-lhe como uma música empolgante a palavra “mais”. Movido por esse afã, procura motivos e ocasiões de sacrificar-se, de renunciar a pequenos egoísmos, de servir e alegrar a vida dos outros. E então, quando se lhe apresentam as dificuldades, elas o encontram já a caminho da doação: são como o bastão que o atleta apanha com força, já em tensão de velocidade, na corrida de revezamento. O homem generoso não é surpreendido pelos obstáculos, pois não estaciona na bondade fácil, mas está em carreira acelerada para a bondade difícil.
A bondade difícil
Seria muito interessante que cada um de nós se perguntasse qual é a sua bondade difícil. Com um pouco de sinceridade, não demoraríamos a descobri-la. Para uns, é a abnegação, para outros a compreensão, para outros a intensidade e perfeição no trabalho, para outros a serena paciência... Para cada um, aquelas virtudes que, nos maus momentos, nos sentimos inclinados a julgar como impossíveis: “Eu não fui feito para isto, isto comigo não dá, nunca vou conseguir”.
Pois bem, essas bondades difíceis devem ser exatamente as nossas metas, voluntariamente abraçadas, no esforço de aperfeiçoamento moral. É nesses “obstáculos” que devemos “crescer”.
Triste coisa seria que nos contentássemos com as virtudes que brotam espontaneamente do nosso temperamento e dos nossos hábitos. Ficaríamos fadados ao raquitismo espiritual e nos fecharíamos numa mediocridade cristalizada e sem remédio. O “homem de manutenção”, de que falávamos, não tem propriamente virtudes firmes, tem antes o que poderíamos chamar “os defeitos das virtudes”, isto é, as manifestações desfibradas de algumas qualidades excessivamente atreladas ao seu modo de ser – tranqüilo, bonachão, ordeiro –, ou às suas manias – “gosto” de fazer isto ou aquilo –, ou aos seus hábitos inerciais. As virtudes boas são mesmo as difíceis. A estas é que o homem digno deste nome deve aspirar.
Depois de se propor essa meta, virá uma segunda parte. Como atingi-la? O que equivale a perguntar-se como enfrentar o lado difícil da bondade e crescer nele. Quando se “quer”, sempre existe um “como”. Os que nunca concretizam os modos práticos de melhorar são os que aspiram aos seus ideais sem sinceridade. Por serem incapazes de dizer “quero”, dizem apenas “quereria”, mas nem eles nem ninguém sabe como é que vão querer.
Sempre há algum modo de fincar o dente numa aspiração difícil. Sempre há pelo menos um modo de começar. “Concretiza – lê-se em Caminho –. Que os teus propósitos não sejam fogos de artifício, que brilham um instante para deixar, como realidade amarga, uma vareta de foguete, negra e inútil, que se joga fora com desprezo”(n. 247).
 claro que, para isto, é preciso saber dar o primeiro passo rumo à meta que nos propomos, e não arredar pé depois, mesmo que custe e custe muito. Com espírito esportivo, devemos tentar uma vez e outra, tendo a coragem e a humildade de “começar e recomeçar”, e tendo ao mesmo tempo a fortaleza de ser pacientes conosco próprios, porque a ascensão da montanha da grandeza moral é sempre lenta. Como numa construção, “para edificar é preciso sofrer (...). As mãos dos pedreiros ferem-se na aspereza da argamassa e, por muito manejarem a colher, tornam-se calosas e as suas unhas descuidadas. A pedra é resistente e pesada. Só obedece à força de marteladas. É teimosa e cheia de arestas pontiagudas e cortantes... Não seria possível construir sem martelo e sem ruído, sem violência nem golpes, por meio de um simples desejo? Todos os que têm medo da realidade esbanjaram assim o seu tempo em fantasias. Meu Deus, fazei-me amar o trabalho rude” (Pierre Charles: A oração de toda a hora).

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