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sexta-feira, 11 de setembro de 2009

DONS SOBRENATURAIS, POR SÃO JOÃO DA CRUZ


DOUTRINA SOBRE DONS


Por São João Da Cruz – Doutor da Igreja






Livro III – Capítulo XXX

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1. Agora é conveniente tratar do quinto gênero de bens nos quais pode a alma gozar-se: os bens sobrenaturais. Por eles entendemos as graças e dons concedidos pelo Senhor, superiores à habilidade e poder natural, chamados gratis datae, dons gratuitos. Tais são os dons de sabedoria e ciência conferidos a Salomão, e também as graças enumeradas por S. Paulo: ”A fé, a graça de curar as doenças, o dom dos milagres, o espírito de profecia, o discernimento dos espíritos, a interpretação das palavras, enfim, o dom de falar diversas línguas” (Cor 12,9-10).



2. Sem dúvida, todos esses bens são espirituais, como os do sexto gênero, do qual nos ocuparemos mais tarde; todavia, existe entre eles diferença notável, motivo para distingui-las uns dos outros. O exercício dos bens sobrenaturais tem por fim imediato a utilidade do próximo e é para esse proveito e fim que Deus os concede, conforme diz S. Paulo: “E a cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito dos demais” (ib. 5,7). Isto se aplica a essas graças. Os bens espirituais, porém, têm por objetivo somente as relações recíprocas entre Deus e a alma, pela união do entendimento e da vontade, conforme explicaremos mais adiante. Assim, pois, há diferença entre o objeto de uns e outros; os bens espirituais visam só o Criador e a alma, enquanto os sobrenaturais se aplicam às criaturas; diferem também quanto à substância e, por conseguinte, quanto à operação, sendo, portanto, necessário estabelecer certa divisão na doutrina.



3. Falemos agora das graças e dos dons sobrenaturais, no sentido aqui dado. Para purificar a vã complacência que a alma neles pode achar, vem a propósito assinalar dois proveitos desse gênero de bens; um temporal e outro espiritual. O primeiro é curar doentes, dar a vista a cegos, ressuscitar mortos, expulsar demônios, anunciar o futuro aos homens, e outros semelhantes benefícios. O segundo é eterno, e consiste em tornar Deus mais conhecido e servido, seja por quem opera esses prodígios, seja pelos que deles são objetos ou testemunhas.

4. Quanto ao proveito temporal pode-se dizer que as obras sobrenaturais e os milagres pouca ou nenhuma complacência merecem da alma; porque, excluído o proveito espiritual, pouca ou nenhuma importância têm para o homem, pois em si mesmos não são meio para unir a alma com Deus, como é somente a caridade.



Com efeito, essas obras e maravilhas sobrenaturais não dependem da graça santificante e da caridade naqueles que as exercitam; seja Deus as conceda verdadeiramente, apesar da maldade humana, como fez ao ímpio Balaão e a Salomão, seja quando exercidos falsamente pelos homens, com a ajuda do demônio, como sucedia a Simão Mago; ou ainda pelas forças ocultas da natureza.



Ora, se entre tais graças extraordinárias algumas houvesse de proveito para quem as pratica, evidentemente seriam as verdadeiras, concedidas por Deus. E estas, – excluindo o seu proveito espiritual, – claramente ensina S. Paulo o seu valor dizendo: “Se eu falar as línguas dos homens e dos anjos, e não tiver caridade, sou como o metal que soa, ou como o sino que tine. E se eu tiver o dom da profecia, e conhecer todos as mistérios e quanto se pode saber; e se tiver toda a fé, até ao ponto de transportar montes, e não tiver caridade nada sou” (1Cor 13,1-2).



Muitas almas que receberam esses dons extraordinários e neles puseram sua estima, pedirão ao Senhor, no último dia, a recompensa que julgam ter merecido por eles, dizendo: Senhor, não profetizamos em teu nome, e em teu nome obramos muitos prodígios? E a resposta será: “Apartai-vos de mim, os que obrais a iniqüidade” (Mt 7,22-23).

5. Portanto, jamais deve o homem comprazer-se em possuir tais dons a não ser pelo lucro espiritual que deles pode tirar, isto é, em servir a Deus com caridade verdadeira, pois aí está o fruto da vida eterna.



Por essa razão nosso Salvador repreendeu seus discípulos quando mostravam muita alegria por terem expulsado os demônios: “Entretanto, não vos alegreis de que os espíritos se vos submetam; mas alegrai-vos de que os vossos nomes estejam escritos no céu” (Lc 10,20). O que, em boa teologia, significa: gozai-vos somente de que estejam vossos nomes escritos no livro da vida.



Seja esta a conclusão: a única coisa na qual pode o homem comprazer-se é a de estar no caminho da vida eterna fazendo todas as suas obras em caridade. Tudo, pois, que não é amor de Deus, que proveito traz e que valor tem diante dele? E o amor não é perfeito quando não é bastante forte e discreto em purificar a alma no gozo de todas as coisas, concentrando-o unicamente no cumprimento da vontade de Deus; Deste modo se une a vontade humana com a divina por meio destes bens sobrenaturais.

Livro III – Capítulo XXXI

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Dos prejuízos causados à alma quando põe o gozo da vontade neste gênero de bens.



1. A meu parecer, três são os danos principais em que a alma pode cair colocando seu gozo nos bens sobrenaturais: enganar e ser enganada, sofrer detrimento na fé e deixar-se levar pela vanglória ou alguma vaidade.



2. Quanto ao primeiro dano, é muito fácil enganar os outros e a si mesmo quando há complacência nas obras sobrenaturais. Eis a razão: para distinguir quais sejam as falsas das verdadeiras, e saber como e a que tempo se devem exercitar, é necessário grande discernimento e abundante luz de Deus: ora,o gozo, e a estimação de tais obras impede muito estas duas coisas. Isto acontece por dois motivos: porque o prazer embota e obscurece o juízo; e porque o homem, movido pelo desejo de gozar, não somente cobiça aqueles bens com muita sofreguidão, mas ainda se expõe a agir fora de tempo.

Mesmo no caso de serem verdadeiras as virtudes e as obras, bastam os defeitos assinalados para produzir muitos enganos, quer por não serem elas entendidas no seu sentido real, quer por não se realizarem nem trazerem proveito às almas no tempo e modo mais oportuno. É verdade que Deus, distribuidor dessas graças sobrenaturais, as concede juntamente com a luz e o impulso para obrá-las na ocasião e maneira mais conveniente; todavia, o homem ainda pode errar muito, devido à imperfeição e ao espírito de propriedade que nelas tem, não as usando com a perfeição exigida pelo Senhor e conforme a vontade de Deus. A história de Balaão confirma o que dizemos; quando este falso profeta se determinou, contra as ordens de Deus, – a ir maldizer o povo de Israel, o Senhor, indignado, o queria matar (Nm 22,22-23). Também S. Tiago e S. João, levados por um zelo indiscreto, queriam que caísse fogo do céu (Lc 9,54) sobre os samaritanos, pelo fato de recusarem a hospitalidade a nosso Salvador; mas foram logo repreendidos por ele.



3. Daí se vê claramente como estes espíritos de que vamos falando determinam-se a fazer tais obras fora do tempo conveniente, movidos por secreta paixão de imperfeição, envolta em gozo e estima delas. Quando não há semelhante imperfeição, as almas esperam o impulso divino para realizar essas obras, e só as fazem segundo o modo e o momento requerido pelo Senhor; pois, até então, não convém agir. Deus, por isso, queixava-se de certos profetas, por Jeremias, dizendo: ”Eu não enviava estes profetas e eles corriam, não lhes falava nada e eles profetizavam” (Jr 23,21). Acrescentando:”Enganaram ao meu povo com a sua mentira e com os seus milagres, não os havendo eu enviado, nem dado ordem alguma”(Jr 23,32). Em outro trecho diz ainda que eles tinham visões apropriadas à tendência do seu espírito e que eram essas precisamente as que divulgavam (Ib. 26). Esses abusos não se dariam se os tais profetas não tivessem misturado o abominável afeto de propriedade a estas obras sobrenaturais.

4. Pelas citações feitas, podemos reconhecer que o dano deste gozo leva o homem a usar de modo iníquo e perverso dessas graças divinas, como Balaão e os que faziam milagres para enganar o povo; e, além disso, induz à temeridade de usar delas sem as haver recebido de Deus. Deste número foram os que profetizavam e publicavam as visões da sua fantasia, ou aquelas que tinham por autor o demônio. Este, com efeito, explora imediatamente a disposição desses homens afeiçoados aos favores extraordinários; fornece-lhes abundante matéria neste vasto campo exercendo as suas malignas influências sobre todas as suas ações; e eles assim enfunam as velas para vogar livremente com desaforada ousadia nestas prodigiosas obras.



5. O mal não pára aí: o gozo e a cobiça desses bens levam essas pessoas a tais excessos que, se antes tinham feito pacto oculto com o demônio (porque muitos fazem coisas extraordinárias por esse meio), chegam ao atrevimento de se entregar então a ele por pacto expresso e manifesto, tornando-se seus discípulos e aliados. Daí saem os feiticeiros, encantadores, mágicos, adivinhos e bruxos. Para cúmulo do mal, esta paixão de gozo nos prodígios extraordinários leva a ponto de se querer comprar a peso de dinheiro as graças e os dons de Deus, a modo de Simão Mago, para fazê-las servir ao demônio. Esses homens procuram ainda apoderar-se das coisas sagradas, e, – não se pode dizê-la sem tremer! – ousam tomar até os divinos mistérios, como já tem sucedido, sacrilegamente usurpando o adorável corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo para uso de suas próprias maldades e abominações. Digne-se Deus mostrar e estender até eles a sua infinita misericórdia.



6. Cada um de nós bem pode compreender quão perniciosas para si mesmas e quão prejudiciais à cristandade são estas pessoas. Observemos de passagem que todos aqueles magos e adivinhos do povo de Israel, aos quais Saul mandou exterminar, caíram em tantas abominações e enganos porque quiseram imitar os verdadeiros profetas de Deus.

7. O cristão, pois, dotado de alguma graça sobrenatural, deve acautelar-se de pôr aí o seu gozo e estimação, não buscando obrar por esse meio; porque Deus que lha concedeu sobrenaturalmente para utilidade da sua Igreja, ou dos seus membros, movê-lo-á também sobrenaturalmente quando e como lhe convier. O Senhor que mandava aos seus discípulos não se preocupassem do que nem como haviam de falar, quando se tratasse de coisa sobrenatural da fé, quer também que nestas obras sobrenaturais o homem espere a moção interior de Deus para agir, pois na virtude do Espírito Santo é que se opera toda virtude. Embora os discípulos houvessem recebido de modo infuso as graças e os dons celestes, conforme se lê nos Atos dos Apóstolos, ainda assim fizeram oração a Deus rogando-lhe que fosse servido de estender sua mão para obrar por meio deles prodígios e curas de doentes, a fim de introduzir nos corações a fé de Nosso Senhor Jesus Cristo (At 4,29-30).



8. O segundo dano que pode provir do primeiro é detrimento a respeito da fé, de duas maneiras. A primeira, quanto ao próximo; como, por exemplo, se uma pessoa se dispõe a fazer milagres ou maravilhas fora de tempo ou sem necessidade, não somente tenta a Deus, o que é grave pecado, como ainda poderá fazer com que o efeito não corresponda à sua expectativa. Os corações, desde logo, serão expostos a cair no descrédito ou no desprezo da fé. Porque embora o milagre se realize, e Deus assim o permita por motivos só dele conhecidos, como fez com a pitonisa de Saul (1Sm 28,12) (se é verdade que foi Samuel que ali apareceu), nem sempre acontecerá assim. E quando acontecer realizar-se o prodígio, não deixam de errar

A segunda maneira é que o homem pode sentir em si mesmo detrimento em relação ao mérito da fé. A estima exagerada dos milagres, cujo poder lhe foi dado, desvia-o muito do hábito substancial da fé que por si mesma é hábito obscuro; e assim, onde abundam os prodígios e os fatos sobrenaturais, há menos merecimento em crer. A esse propósito, diz-nos S. Gregório: “A fé é sem mérito quando a razão humana e a experiência lhe servem de provas”. Por este motivo, Deus só opera tais maravilhas quando são absolutamente necessárias para crer. A fim de que os seus discípulos não perdessem o mérito da fé quando tivessem experiência da sua ressurreição, Nosso Senhor, antes de se lhes mostrar, fez várias coisas, para induzi-los a crer sem o verem.

A Maria Madalena primeiramente mostrou vazio o sepulcro e depois lhe fez ouvir dos anjos a notícia desse mistério; porque a fé vem pelo ouvido, como diz S. Paulo, e assim esta santa deveria acreditar antes ouvindo do que vendo. Mesmo quando o viu, foi sob o aspecto de um homem comum. Nosso Senhor quis desse modo acabar de instruí-la na fé que lhe faltava por causa de sua presença sensível. Aos seus discípulos, primeiramente, enviou as santas mulheres a dar-lhes a nova da ressurreição, e eles depois foram olhar o sepulcro. Aos dois que iam a Emaús (Lc 24,15) juntou-se no caminho dissimuladamente; e inflamava-lhes os corações na fé, antes de se manifestar aos seus olhos. Enfim, repreendeu a todos os seus apóstolos reunidos, por não acreditarem na palavra dos que lhes tinham anunciado a sua ressurreição; E a São Tomé, porque quis ter experiência tocando nas suas chagas, censurou o Senhor quando lhe disse: “Bem-aventurados os que não viram, e creram” (Jo 20,29).

9. Vemos, portanto, que não é condição de Deus fazer milagres, antes, ele os faz quando não pode agir de outro modo. Foi por isso que censurou aos fariseus: “Vós, se não vedes milagres e prodígios, não credes” (lb. 4,48). As almas cuja afeição se emprega nessas obras sobrenaturais sofrem grande prejuízo quanto à fé.



10. O terceiro dano é cair ordinariamente a alma na vanglória ou em alguma vaidade, quando quer gozar em tais obras extraordinárias. O próprio prazer por essas maravilhas já é vaidade, não sendo proporcionado puramente em Deus e para Deus. Eis por que Nosso Senhor repreendeu seus discípulos quando manifestaram alegria por terem subjugado os demônios (Lc 10,20); jamais lhes dirigiria esta reprimenda, se não fosse vão tal gozo.



CAPÍTULO XXXII

Dos proveitos resultantes da abnegação do gozo nas graças sobrenaturais.



1. A alma, além das vantagens encontradas livrando-o se dos três danos assinalados, adquire, pela privação de gozo nas graças sobrenaturais, dois proveitos muito preciosos. O primeiro é glorificar e exaltar a Deus; o segundo, exaltar-se a si mesmo. Efetivamente, de dois modos é Deus exaltado na alma. Primeiramente, desviando o coração e a afeição da vontade de tudo o que não é Deus, para fixa-los unicamente nele. ”Chegar-se-á o homem ao cimo do coração, e Deus será exaltado” (Sl 63,7). O sentido destas palavras de Davi já foi referido no começo do tratado sobre a noite da vontade. Quando o coração paira acima de todas as coisas, a alma se eleva acima de todas elas.



2. Quando a alma concentra todo o seu gozo só em Deus, muito glorifica e engrandece ao Senhor que então lhe manifesta sua excelência e grandeza; porque nesta elevação de gozo, a alma recebe de Deus o testemunho de quem ele é. Isso, porém, não acontece sem a vontade estar vazia e pura quanto às alegrias e às consolações a respeito de todas as coisas, como o Senhor ainda o ensina por Davi: ”Cessai, e vede que eu sou Deus” (Sl 45,11).

E outra vez diz: “Em terra deserta, e sem caminho, e sem água; nela me apresentei, a ti como no santuário para ver o teu poder e a tua glória” (Sl 42,3). Se é verdade que Deus é glorificado pela completa renúncia à satisfação de todas as coisas, muito mais exaltado será no desprendimento dessas outras coisas mais prodigiosas, quando a alma põe somente nele o seu gozo; porque são graças de maior entidade, sendo sobrenaturais; e deixá-las para estabelecer unicamente em Deus sua alegria será atribuir a ele maior glória e maior excelência do que a elas. Quanto mais nobres e preciosas são as coisas desprezadas por outro objeto, mais se mostra estima e rende-se homenagem a este último.



3. Além disto, no desapego da vontade nas obras sobrenaturais, consiste o segundo modo de exaltar a Deus. Pois, quanto mais Deus é crido e servido sem testemunhos e sinais, tanto mais é exaltado pela alma; porque ela crê de Deus mais do que os sinais e os milagres lhe poderiam dar a entender.



4. O segundo proveito, como dissemos, faz a alma exaltar-se a si mesma. Afastando a vontade de todos os testemunhos e de todos os sinais aparentes, eleva-se em fé muito mais pura, a qual Deus lhe infunde e aumenta com maior intensidade. Ao mesmo tempo, o Senhor faz crescer na alma as duas outras virtudes teologais, a esperança e a caridade. A alma goza, então, de sublimes e divinas notícias, por meio deste hábito obscuro da fé em total desapego. Experimenta grande deleite de amor pela caridade que lhe faz gozar unicamente de Deus vivo; e mediante a esperança permanece satisfeita quanto à memória. Tudo isto constitui admirável proveito, essencial e diretamente necessário à perfeita união da alma com Deus.



(São João da Cruz, Subida do Monte Carmelo, Livro III. cap. XXX – XXXII)

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